Tecnologia avançada divide futebol entre VAR dos ricos e dos pobres, diz ex-árbitro

Publicado por: Redação

Se o VAR existisse em 1986, um dos gols mais famosos das Copas do Mundo teria sido anulado: o lance conhecido como La Mano de Dios, quando Maradona deu um tapa na bola e abriu o placar para a Argentina contra a Inglaterra, dificilmente passaria pelo julgamento do árbitro assistente de vídeo. Os ingleses iriam comemorar, mas o futebol perderia um de seus momentos mais icônicos.

Relembrar lances históricos que possivelmente seriam cancelados pelo VAR é um exercício interessante, embora uma das premissas básicas do futebol é que a palavra “se” não existe. No final, o que vale é o placar quando o juiz apita.

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Por um lado, o uso da tecnologia do VAR, implantado em 2016 com o objetivo de diminuir os erros da arbitragem, está conseguindo mudar o futebol, corrigindo injustiças e evitando erros, ele também está influenciando resultados, confundindo torcedores e anulando lances no mínimo duvidosos.

Por outro, segundo comentaristas e ex-árbitros, o avanço da tecnologia utilizada na Copa do Mundo dificilmente será usada em campeonatos nacionais por causa do alto custo para ser implantada.

“O VAR tem muitos pontos positivos, mas outros negativos, também. Um dos motivos para o futebol ser o esporte mais praticado e visto do mundo é que as 17 regras são universais, todo mundo conhece. Você joga futebol com as mesmas regras na Copa do Mundo e em um campo no interior de São Paulo”, explica José Carlos Marques, professor de Comunicação da Unesp e ex-árbitro de futebol.

“Com o avanço do VAR, isso não acontece mais, há uma distorção. Você tem o futebol rico, com o VAR super avançado, e o futebol pobre que não tem como pagar por essa tecnologia”, diz.

O maior exemplo é o chamado “impedimento semiautomático”, que vem chamando atenção por causa de sua precisão ao indicar que o atacante de um time está à frente dos defensores do adversário.

O sistema é capaz de indicar rapidamente um impedimento de poucos centímetros, embora em alguns lances não tenha ficado claro essa diferença. Isso aconteceu, por exemplo, em um gol anulado da Croácia no jogo que eliminou a Bélgica da Copa, na primeira fase.

Em outro lance, a eficiência e rapidez do sistema chamaram a atenção: em apenas 31 segundos, o VAR indicou que um jogador da Alemanha estava impedido ao marcar um gol contra a Espanha, na segunda rodada.

Segundo a Fifa, o “impedimento semiautomático” se utiliza de 12 câmeras para rastrear a bola e a posição exata dos atletas — ele consegue diferenciar 29 pontos específicos do corpo de cada jogador, 50 vezes por segundo. Um sensor determina o exato momento em que a bola encosta no autor do passe.

A partir daí, os dados da bola são enviados 500 vezes por segundo para um sistema de inteligência artificial que aciona os árbitros de vídeo caso haja um impedimento. Então, o lance aparece em uma animação 3D, semelhante aos jogos de videogame.

“É uma tecnologia muito avançada, que custa muito caro. Quando acabar a Copa, o que vai acontecer? No Brasil, por exemplo, já utilizamos uma tecnologia inferior à da Europa. Por enquanto, esse equipamento é um sonho muito distante para a maioria dos campeonatos”, explica Renata Ruel, ex-árbitra e comentarista da ESPN.

No Brasil, os campeonatos usam uma tecnologia que ainda depende da ação humana para funcionar, e é defasada em relação a utilizada em campeonatos europeus — e mais demorada, também. As linhas que determinam a posição dos jogadores são traçadas por um assistente, na sala de vídeo.

Nos últimos anos, houve lances decisivos em que a própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF) reconheceu que as linhas foram traçadas de maneira equivocada, como em um gol anulado do São Paulo contra o Atlético-MG no Campeonato Brasileiro de 2020.

Isso acontece porque, quando os jogadores estão muito próximos, as linhas do atacante e do defensor podem ficar sobrepostas, deixando uma dúvida se houve ou não a infração.

“Alguns especialistas dizem que, na tecnologia usada no Brasil, existe uma margem de erro que pode chegar a 30 centímetros. Isso é muita coisa. Então, nesses casos, não sabemos realmente se há impedimento ou não. A tecnologia semiautomática em tese resolve essa questão”, diz Ruel.

Para José Carlos Marques, a nova tecnologia da Fifa acaba com a noção de “mesma linha” no impedimento. “A arbitragem considerava que os jogadores estavam na mesma linha quando era impossível determinar quem estava à frente. Isso beneficiava o ataque, o gol, mas agora isso não existe mais”, explica.

Gols anulados por poucos centímetros levaram torcedores e comentaristas, como o escritor Luiz Antonio Simas,a apelidar esse tipo de lance de “nanoimpedimento”.

Com VAR ou não, outro tipo de lance que continua gerando polêmica é a chamada “mão na bola”, principalmente em jogadas de pênalti.

Até poucos anos atrás, para determinar se havia infração, o árbitro precisava analisar se o jogador teve ou não a intenção de colocar a mão na bola. “O problema é que você não pode falar em intenção na regra, porque isso é algo muito subjetivo”, explica Ruel, da ESPN.

Hoje, o principal critério é se jogador fez um movimento natural ou não quando a bola tocou sua mão.

“Agora, a arbitragem precisa julgar se aquele movimento de levantar o braço foi antinatural, mas continua muito difícil determinar isso, porque cada um se movimenta de uma forma, não existe uma maneira correta de se movimentar. Acho que ficou mais difícil essa análise”, diz a ex-árbitra.

Um lance da primeira fase da Copa exemplifica esse dilema.

No jogo entre Portugal e Uruguai, na primeira fase, o VAR acionou o árbitro de campo quando um jogador da seleção sul-americana encostou a mão na bola ao cair no chão — ele utilizou o braço para amortecer a queda. O juiz confirmou o pênalti.

Para Ruel, o movimento do uruguaio foi natural e a infração não deveria ter sido marcada. Já Marques acredita que o pênalti foi claro, porque o jogador poderia ter evitado tocar a bola.

“Essas mudanças constantes sobre o que é bola na mão virou algo para entendidos da regra. Sempre precisa alguém explicar por que foi pênalti, pois o torcedor não entende mais”, explica Marques.

Fetiche tecnológico

Outra crítica que se faz ao VAR é que ele interfere demais no jogo e tira a autonomia do árbitro de campo na condução da partida.

“Se o VAR for usado demais, praticamente em todos os lances ele vai encontrar alguma irregularidade. Isso quebra muito o jogo. O VAR nos mostrou que os árbitros erram mais do que a gente achava que errava”, diz Ruel.

Por causa desse tipo de interferência, um jornalista argentino cunhou uma frase que ficou famosa na crônica esportiva: “O VAR foi criado para achar elefantes, mas está encontrando formiguinhas.”

Para Arnaldo Cezar Coelho, ex-árbitro e por décadas comentarista na TV Globo, o VAR “transformou o árbitro em um robô”.

“Tem muita gente dando pitaco. O árbitro apita no campo, mas tem um monte de assistentes para julgar o que ele fez”, diz ele, que apitou a final da Copa do Mundo em 1982, na Espanha, vencida pela Itália em um jogo contra a Alemanha.

Para Coelho, as imagens analisadas pelo VAR podem “mentir”.

“Nem sempre a fotografia do lance mostra a intensidade da jogada. Se os jogadores estão correndo, um coloca a mão no ombro do outro, e esse cai. Se você assistir pela TV, pode parecer que o toque teve influência na queda, e a arbitragem marca um pênalti. Mas só o árbitro ali, no campo, vai saber a intensidade do toque, a força dos jogadores”, diz.

Já Marques afirma que o árbitro de vídeo foi uma resposta da Fifa ao fato de outras modalidades já utilizarem a tecnologia em lances duvidosos já anos, como o tênis e o vôlei.

“Existe uma fetichização da tecnologia, um esforço dos programadores para aproximar o jogo do videogame, assim como tentam aproximar o game da experiência real. Há a ideia dos aplicativos de que a tecnologia pode resolver tudo com um clique”, diz Marques.

Matéria BBC-Brasil

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