Por Vítor Costa: Transbordamento escolar;

Publicado por: Redação

Em Divinópolis se tornou corriqueiro vereadores criarem projetos de leis que dispõem sobre a educação municipal. Ao menor sinal de um problema social ou pressão de determinados grupos de eleitores, o parlamento divinopolitano lança uma nova lei que, se aprovada, recai sobre as escolas a responsabilidade acerca do problema. Essa prática, que se tornou cultural, faz com que a sociedade espere que a escola seja a responsável por resolver todos os tipos de demandas sociais, gerando um excesso de responsabilidades escolares e causando uma confusão entre o conceito de escola e a concepção de espaço público de educação. Estes mesmos parlamentares que legislam aumentando a responsabilidade docente, não se empenham na mesma intensidade para reconhecer o papel primário do educador e seus fundamentais direitos, principalmente os salariais. Tais acontecimentos me fizeram lembrar de um assunto abordado pelo Prof. António Nóvoa, reitor da Universidade de Lisboa, onde escreveu sobre o “transbordamento escolar” em seu livro intitulado Evidentemente.

 Além do livro citado, Nóvoa apresentou esse termo ao Brasil durante uma palestra no SINPRO de São Paulo em 2006. Quando o professor afirma que a instituição escolar “transbordou”, ele critica a interferência política que a escola vem sofrendo nos últimos anos. Criou-se uma ideia de que as comunidades têm o direito de impor seus valores, suas crenças, seus princípios e o que os convém sobre o programa educacional, programa este que se encontra vulnerável a alterações do ponto de vista ideológico que vão da extrema direita à extrema esquerda. Na maioria das vezes tais alterações na legislação são feitas sem a participação de quem realmente exerce a função de ensinar: os professores. Estas atitudes corroboram com a teoria de que a sociedade atual reconhece a escola como uma mera prestadora de serviços às famílias e não como uma instituição.

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As políticas de privatização e liberalização do ensino introduzem nos pais a ideia de que é possível inserir seus filhos na escola que ensine o que eles querem, e que cada grupo social poderá ter a sua própria escola curvando-se aos anseios dos pais. Como exemplo desta subordinação educacional, encontramos instituições particulares de ensino como Colégio Recanto do Espirito Santo de Itaúna -MG, que utiliza do seu espaço para levantar polêmicas, como quando responsabilizou mulheres que usam roupas curtas por assédio e violência, alegando que o “pecado da sedutora é muito maior que o pecado do seduzido” e também quando produziu uma cartilha escolar afirmando que símbolos LGBTQIA+, personagens revolucionários de esquerda, caveiras, unicórnios, dentre outros, são de uma ideologia anti-família.

Em Divinópolis, podemos analisar dois recentes projetos: o primeiro foi o projeto de lei (PL) 118/2021 de autoria do vereador reacionário Eduardo Azevedo (PSC) (que também é irmão do Cleitinho) e sancionado no dia 24/09/2021 pelo seu irmão e prefeito Gleidson Azevedo (PSC). Este PL apresenta inconstitucionalidades que fere o pacto federativo, o qual estabelece a não competência do município em legislar sobre as diretrizes da educação, sobre a liberdade de cátedra e sobre a pluralidade de ensino. Ensinar é transcender fronteiras, sobretudo respeitando as origens, mas indo além delas. Logo essa agenda comunitarista que os conservadores insistem em garantir que as crianças serão educadas nos valores da família tradicional é muito perigosa, pois, a pior agressão ao ensino é proibir um educador de responder a perguntas dentro da sua sala de aula.

No segundo caso, podemos analisar o projeto de lei 108/2021, de autoria do vereador Flávio Marra (PAT), que dispõe sobre a aplicação da “educação animal” nas escolas municipais da cidade. Consultei o advogado e professor Tiago Bessa sobre a constitucionalidade do PL, que emitiu a sua análise: “o projeto mencionado, em um olhar inicial, não representa afronta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, cuja elaboração é de competência privativa da União”, diferente do primeiro caso. Apesar da legalidade, este projeto irá promover mais um “transbordamento escolar”, que demonstra que temos mais uma vez um problema social que compete ao conceito de espaço público sendo transferido para as escolas. Ainda segundo António Nóvoa: “no espaço público tem que haver mais responsabilidade das famílias, das comunidades locais, dos grupos culturais, das empresas, das diversas igrejas, entidades científicas etc. Só é possível defender uma escola centrada na aprendizagem se defendermos o reforço desse espaço público da educação, onde se possa exercer um conjunto de atividades que estão jogadas para dentro das escolas”.  Nas culturas onde há um excesso de missões impostas pela sociedade sobre a escola, encontramos instituições escolares com maiores fragilidades do estatuto docente, fazendo com que escolas particulares se pautem na aprendizagem e escolas públicas em tarefas sociais e assistenciais.

O professor Nóvoa, em seu livro, nos deixa um paradoxo: “por um lado muitos defendem que tudo se resolve dentro das escolas, por outro não valorizam os professores e desprestigiam a classe dos profissionais responsáveis por ‘resolver’ todas as missões impostas sobre a escola”. Trazendo esse paradoxo para Divinópolis, podemos ver que realmente isso acontece. Os mesmos vereadores que legislam sobre a educação, que tentam regulamentar o que os educadores podem ou não abordar em sala, ou que incluem coisas a torto e a direito para a instituição escolar acumular responsabilidades, não apoiaram os servidores públicos na reivindicação do pagamento do reajuste salarial e do vale alimentação, que é um direito dos profissionais. No caso específico do vereador Eduardo Azevedo, com suas recorrentes declarações atacando nominalmente professores municipais e que já os acusou de implantar a “ideologia de gênero” nas escolas, estimula intoxicação da opinião popular sobre uma classe que já sofre com péssimas condições de trabalho, com a desvalorização de sua função e com a degradação dos seus salários. Paulo Freire, em seu livro Pedagogia do Oprimido, afirma que a educação é um ato político, sendo assim ela possui um lado, aos educadores atacados fica a convicção de estarem do lado certo da força, que é o lado de quem tem a educação.

 

“Investida de todas as missões possíveis e imagináveis, a escola, vítima de um verdadeiro

delírio inflacionista, via-se despojada da especificidade de uma educação escolar.

E foi este facto que criou um grande mal-estar no seio dos professores, e também

entre os pais e os alunos”. Daniel Hameline

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